Um novo capítulo na democracia americana
Das principais nações que emergiram à luz da modernidade, os Estados Unidos foram uma das exceções mais importantes, pois nunca vivenciaram um regime de exceção autoritário como o nazismo alemão, o fascismo italiano ou os regimes ditatoriais latino-americanos. O aristocrata francês Alexis de Tocqueville afirmou em sua obra, A democracia na América, que “o estado social dos americanos é eminentemente democrático. Teve esse caráter desde o nascimento das colônias e o tem mais ainda nos dias de hoje”.
A cultura democrática da sociedade estadunidense, contudo, não livrou o país dos conflitos inerentes à formação de uma nação moderna. Desde o seu processo de construção nacional, os chamados pais fundadores (founding fathers) elaboraram projetos de nação conflitantes, dando origem a divisões complexas, que levariam a uma grande guerra civil no século XIX.
Embora a Constituição norte-americana permaneça a mesma desde os tempos de independência, sua cultura política enfrentou diversos paradigmas no que diz respeito à formação de um estado mais ou menos centralizado, a permanência ou não do trabalho escravo, a segregação ou unificação de suas distintas tradições étnicas e culturais, sua inserção ou afastamento dos temas globais no século XX, principalmente no envolvimento ou não nas duas guerras mundiais.
Enfrentados muitos desses dilemas, nas últimas décadas, uma nova dicotomia emergiu na cultura política dos EUA, quando o tema dos direitos civis e da ampliação da ideia de democracia adentrou ao centro dos movimentos sociais e políticos conservadores e progressistas. O frágil consenso que existiu nas décadas de 1980 e 1990, a partir do debacle soviético, representou, por um breve momento, o “fim da história”, através da vitória hegemônica da democracia liberal norte-americana, sofreu um severo dano após a Crise de 2008, quando a desigualdade das condições de vida dos americanos saltou aos olhos de toda a sua sociedade.
No campo conservador, uma das principais representações desse novo estado de espírito social foi a criação do movimento Tea Party, em 2009, quando milhares de manifestantes, mais vinculados às ideias do Partido Republicano, se reuniram contra a reforma do sistema de saúde, proposto pelo então presidente democrata Barack Obama. Ademais, suas principais propostas incluíam a redução do papel do Estado na vida em sociedade dos cidadãos, a diminuição dos impostos, a redução da dívida pública, além de pautas conservadoras relacionadas aos costumes da sociedade americana.
No campo progressista, a eclosão do movimento Black Lives Matter, em 2020, significou a incorporação de várias pautas identitárias da luta pelos direitos civis, que vinham desde os anos 1950-60 ganhando terreno no pensamento acadêmico e intelectual da sociedade americana. Junto com esse movimento, o termo woke ressurgiu como uma ideia de despertar de consciência das desigualdades étnicas e sociais dos estadunidenses.
Muitos analistas avaliam o atual nível de confrontação político-ideológico da sociedade americana como o que de mais próximo possa chegar a uma nova Guerra Civil em sua história, principalmente quando levam em consideração o que ocorreu no ataque criminoso ao Capitólio, em janeiro de 2021. Todavia, o que se faz presente na atual disputa entre o republicano Donald Trump e a democrata Kamala Harris não é algo capaz de provocar uma divisão extrema na cultura política dos EUA.
Trata-se de um embate acerca do redimensionamento do papel do Estado na sociedade contemporânea norte-americana, bem como quais linhas de atuação os EUA devem conduzir nas atuais questões geopolíticas na Europa Oriental, Leste Asiático e Oriente Médio. O lugar dos atuais imigrantes na sociedade americana, a relação entre uso da força, a diplomacia comercial nas relações internacionais e a luta pela identidade do que é o povo norte-americano são as dimensões históricas da formação dessa nação. Portanto, muito antes de uma nova secessão, o que se apresenta nos próximos dias é mais um capítulo na história da Democracia na América.
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